terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O rascunho a teu punho é bem melhor

"Nós. E a noite estendida sobre,
e um outro teto antes. Nós, somente,
E todo o futuro para nós,
como uma criatura,
Uma porta que devora no fim do caminho
Nós.
A noite estendida sobre, e um outro teto antes
Outros de nós no ar que nos contorna.
Não como nós. Aquém de nós.

O futuro para nós como uma criatura
Uma porta que devora no fim do caminho,
E sua presença lá indubitável sendo,
As estrelas, para nós como o futuro e a porta,
Já habitando o céu para onde ascenderemos,
Eu e você, amor, quando deixarmos vivo
o sentimento nosso que a nós transborda,
A intenção pura e infinita que a nós concede,
o meu ou o seu deus, ainda não sabemos.

(Meus braços, meus braços te envolvem)

Meus braços te envolvem
Seus olhos me guardam,
Estamos protegidos e queimamos,
Seguros (de nós mesmos), no escuro e no silêncio
(Como a vela que queima na igreja)
Como a fogueira dentro da caverna
num dia de tempestade.

Responderemos ao futuro
imitando às estrelas."
Me perdoe, pequei em não anotar a data na folha de papel.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Nesta prosa

Venha. Junte-se a mim e veja, através das janelas, o mundo calado das chuvas. O mundo imóvel, como que assombrado, onde passam as pombas e os pardais, voando, ao som do vento que exila as folhas; e ainda, nessas paredes de um mundo próprio, temos o silêncio do abrigo. Como os desertos. O sol estilhaça, e chegará a noite das águas, esse manto sem lua. Mas estamos aqui, com os pés descalços sobre a ardósia, e sua boca imensurável sorri ao espelho que é o vidro; espelho dos meus olhos em que pousam seus carinhos, como estrelas fulgidas, como pequenos vaga-lumes; e então te percebo. Quer abrir a sacada, os braços como asas enormes, quer perder-se na noite, voar como nos sonhos, em uma volúpia crescente. Mas por hoje, ficamos; alheios as chuvas como os pássaros sob a oliveira, como outros sobre as nuvens.

As paredes escurecem, o mundo adormece e o resto é de outra prosa.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Buraco em Montes Altos

Quando começaram a retirar toda a parafernália do local, o buraco em Montes Altos já abria cem metros de diâmetro, tinha causado centenas de fatalidades e o furor das principais emissoras televisivas, que por si impulsionaram milhares de visitantes e o episódio que você pode conhecer como “Os deslizes de Montes Altos”. Outras pessoas, como os moradores de cidades próximas, devem relatar por “O incidente de oitenta e cinco”. Independente do vernáculo, as duas definições resumem o período de oito meses, do fim de Abril ao começo de Janeiro, em que o prefeito Argélio governava os três mil habitantes provincianos e suspeitos de um município pacato; um molde maranhense dos shires ingleses e dos countys americanos.
Nessas cidades o tempo não foge como a nós. Portanto, dois caminhões que se chocaram em um domingo, tendo um deles tombado, afligiram no asfalto uma rachadura do tamanho das tangerinas, que permaneceu sem supervisão até a madrugada de segunda. Vejam só, as pessoas em Montes Altos tem a fama de serem presunçosas. Quando a caminhonete da prefeitura iluminou a fenda com um holofote, preso a um ferro na carroceria, os funcionários que deveriam reparar os danos pouco fizeram; coçaram os quepes e fitaram-na: o pequeno buraco, agora do tamanho do veículo, poderia arrastá-los para sabe se lá quantos metros subterrâneos. E assim pensaram, uns com os outros, no aconchego de seus colchões pobres, de feltro; resolveram que pouco ou nada poderia ser feito para remediá-lo, o maldito buraco, e foram ter em suas casas no subúrbio.
Quando a notícia chegou ao prefeito Argélio, de que a fenda não fora reparada, esta já estava maior e não demonstrava sinais de que iria, hora ou outra, desistir; engoliria a cidade toda. A única solução seria locar os tratores de Paço do Lumiar. Mas mesmo este município, que era o mais próximo, estava a horas de distância em uma estrada esburacada e alagada pelas chuvas mansas. As máquinas por hora atribuiriam dívidas exorbitantes. - Fora o trabalho todo... -, pensou Argélio na poltrona reclinável em seu gabinete. - Que fique assim.
As pessoas não protestavam, estando para o buraco como estamos todos para a morte: esperavam cheios de um otimismo vão. E assim ao caos se deu teor de castigo divino. Quando as avenidas principais foram consumidas, tomaram rotas alternativas; e quando as vendinhas ruíram, começaram a plantar no quintal, no encharque, no lodo. Mas andavam por aí sempre com um mal estar no estômago e, quando ouviam os ruídos do deslize de terra e asfalto, desatinavam a rezar, apertando as mãos em súplica.
Os primeiros mortos foram velados, visto que o cemitério era a alguns quilômetros do centro, com grande assombro. Mas uma vez que os postes foram aterrados, cessando a energia elétrica e rompendo os fios de telefone, a contagem deles se perdeu.
Nas ruas, estilhaçadas pela força dos deslizes, imperava o sentimento de derrota. Sair e ver o monstro, inevitável e voraz, o maldito buraco, com o só propósito de trabalhar ou de visitar alguém, foi desconsiderado. Alguns cidadãos se moveram até outras cidades. Mas, na grande maioria, os Altenses esperaram a morte em casa. E essa chegou, engolindo as vidas em uma fila circular concêntrica.
Quando as emissoras televisivas chegaram, o buraco já constava uma catástrofe nacional. Mediram cento e vinte metros de profundidade, todos de lama e escombros do que foi Montes Altos. Os analistas e os contadores obtiveram, em esforço coletivo, o valor da soma necessária para reparar o que se espalhou como “A boca do Inferno” no resto do país. Mas era óbvio que esse não era o ideal. A proposta, de relocar as pessoas nas cidades que cercavam a sua, não agradou a todos os moradores – a idéia de começar uma nova vida, e do trabalho necessário para tal, aterrorizou as famílias. Porém alguns, como Argélio, com uma enorme barba e já sem profissão, fugiram para morrer de fome no Rio de Janeiro. Os outros insistiram em continuar lá, onde dormia o buraco.
Ele permaneceu a ruir, mas eventualmente parou. Hoje, vinte e seis anos após o incidente, que se tornou uma fábula que entorna a preguiça, uma tragédia indelével da história maranhense, se encontram não mais que cem habitantes. Vivem de plantar alface e cenoura, na terra úmida da beira. E quando estão lá, olham para baixo, para o buraco, como uma grande criatura, morta de velhice, e não deixam de pensar pelos que sucumbiram, como penso agora, que descansem em paz.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A Casa de Peñaflor

O fato ocorreu em uma terça-feira fugidia. As árvores arrastavam sua sombra através do vão da porta como pequenas mãos estendidas. Anna dormia profundamente. As paredes de madeira eram iluminadas por uma única lâmpada, que pendia de um fio vermelho e balançava com o vento forte. Se fora ela que a acendeu, não perguntei. A viagem até a cabana, por entre as ruas insólitas de pedra e musgo de Talagante, no Chile, e rumo a Santiago, foi a mais tempestuosa de todas. A chuva não cessou um segundo e os únicos alívios na noite sem lua eram as luzes, fracas e azuis, do painel do carro. O frio era absoluto, e o cansaço nos adormeceu no minuto que chegamos à cama, ou talvez antes, numa pousada na encosta de uma lagoa.
Agora, enterrado nos cobertores de lã da estalagem, observava-a dormir, e os pequenos reflexos do seu corpo para o frio matinal. Quando acordou, permaneceu imóvel e disse:
- Ainda está chovendo?
- Sim. E está ainda mais frio do que ontem – balbuciei.
- Onde exatamente estamos? Já estamos em Santiago? – me perguntou, com seus olhos grandes de súplica.
- Aparentemente, estamos nos sítios de Peñaflor. São duas horas de viagem até Santiago. – informei-a, ainda sob os cobertores de casimira – Mas podíamos passar o dia aqui, e seguir o rumo amanhã.
Acenou com a cabeça e fechou os olhos. As sombras debaixo da porta continuavam a dançar e se ouvia o som da chuva fraca estalando na lagoa.
- Amor, me conte sobre a casa de ontem... – pediu-me, se apoiando sobre o cotovelo – você insistiu que a conhecia e a sua origem.
- Bem... Para começar, aquelas luzes não deveriam estar acesas. A dona, pelos maus cálculos, morreu a cerca de meio século.
- Quando você começa por “Para começar”, é história longa.
- É mais longa do que me lembro. – Afirmei.
Eu passei o início da manhã pensando na casa. Perdemos-nos pelos campos e paramos nos domínios de seus grandes portões, entalhados de ouro e bronze, na noite anterior. Duas luzes na torre, como os olhos amarelos e enérgicos de um felino, eram a única luz visível em quilômetros de mata e vultos duvidosos.
- Não me lembro o nome de sua proprietária. De qualquer maneira, nunca foi conhecida pelo nome. Casou-se cedo com o herdeiro da fortuna das armas Winchester, John, que possuía na época a segunda ou a terceira maior herança das Américas, acumulada entre acordos com o governo na primeira guerra. – Disse, e Anna chegava mais perto, entrelaçando os pés e as mãos com as minhas sob o cobertor. – Já possuíam muitas propriedades, como as notórias mansões em Connecticut, somando quase um terço do estado. Numa dessas casas a filha do casal morreu, e eventualmente o próprio John. As causas ainda são misteriosas.
- Não esperava uma história de terror. Você sabe que eu não gosto dessas. – interrompeu Anna, já mais desperta e atenta.
- Está mais para uma história sobre a insanidade. – afirmei – Meses após a morte de seus entes, a Senhora não passava uma semana bem. Estava sempre pigarreando, tossindo, com febres, sendo encontrada em um estado mais que letárgico inúmeras vezes. Os doutores não sabiam o que fazer. A família tinha fundamentos espíritas, e a única resposta que a Senhora encontrou, dentre a medicina e a religião, seguiu. – Continuei falando, em um fervor inconcebível de dono da história – A sua guia espiritual lhe informou que a causa da morte, tanto da filha quanto do marido, era a de uma maldição insólita. Todos os espectros de todos os mortos de combate por rifles Winchester vagavam nos mesmos corredores de sua casa, procurando se vingar daqueles que impulsionaram sua fatalidade.
- Em quantos espectros falamos? – Perguntou.
- Em centenas de milhares, ou à borda de um milhão. Na época entre as guerras só se comprava um Winchester para dar cabo de amantes ou da própria vida. Mas o saldo vem desde a conquista do oeste estadunidense. Na segunda guerra, morrer pelos seus canos únicos já era considerado de mau gosto. Vá, um milhão. Mas a senhora não acreditou no ato. Apenas meses mais tarde, ao passo que os via entesourando os espelhos e as vidraças, considerou mudar-se. Viajou por toda a América do Sul, até que seu cocheiro se perdeu e o cavalo caiu morto aqui em Peñaflor, às encostas de um grande terreno e uma modesta casa amarela. É a casa que vimos ontem na escuridão.
- A casa não parecia modesta. A comparação a um castelo parecia modesta. – Disse, me olhando com deboche.
Começava a ventar mais na pousada, e a lâmpada de filamento formava um círculo de luz no chão que caminhava pelo quarto. Da janela, perpendicular à porta, podíamos ver uma só nuvem massiva e negra. Prossegui:
- De fato, a planta original da casa hoje corresponde à base da torre principal. Em cerca de um mês a Senhora ergueu inúmeros quartos para as acomodações de seus criados, uma piscina, e reformou toda a pintura interna. Viveu bem lá por cerca de seis meses. Sua vidente, que dividia também as premonições do sonho, percorreu o labirinto de ontem para lhe entregar uma mensagem pessoalmente. Disse-lhe que os espectros estavam na casa. Sua única chance de não contrair os agouros estava em estar, constantemente, construindo-a e os aprisionando lá.
- Não funcionou, presumo.
- Funcionou um pouco. Nos primeiros meses, construía um poço, uma chaminé ou um salão para jogos, os reformando sempre e sem necessidade. Sua única escolha excêntrica era a completa ausência de janelas ou de espelhos. No mais, os arquitetos chilenos não protestavam. Queria vedar-se dos vultos, mas não pôde fazê-lo com as vozes, que cresciam vociferando em sua orelha, ecoando pelos longos corredores. Perdeu sua lucidez como quem perde o fôlego. Passou a construir com um só arquiteto fiel, e da velocidade que perdeu ganhou no engenho de suas obras. – Parei a fitar Anna.
Estava atônita e sem palavras. Começava a esfriar ainda mais. A história foi interrompida para que eu achasse um outro cobertor de lã no armário empoeirado e que estocava grande quantidade de tudo.
Sua primeira foi a torre. – continuei – onde passou a dormir e onde morreu vinte anos mais tarde. Os pisos eram peculiares. Com a luz adequada, eram pretos vistos de um lado do quarto e inteiramente brancos vistos do outro. Às vezes não dormia. Acendia as luzes da torre e as empregadas, que conversavam escondidas em uma das cozinhas, não demoravam a ouvir seus gritos. Com o tempo, dispensou também as empregadas, como os jardineiros e os rapazes que cuidavam da piscina, de modo que a casa passou a exibir inúmeras teias de aranha e o descuido de um templo abandonado. – Não conseguia parar, e os olhos de Anna certamente não o queriam – Se deu a construções excêntricas. Seu único arquiteto, um homem com quase o dobro de sua idade, era pago para toda sorte de insultos. O número de cômodos subiu de quarenta para cem em poucos anos. Os corredores escondiam passagens secretas, portas que davam à lugar nenhum ou a paredes e escadas que davam no teto.
Assim começou um verdadeiro jogo entre a Senhora e as miríades de espíritos que habitavam sua enorme casa. Diversas anotações, em riscos que somente ela entenderia, pintavam os corredores e indicavam as câmaras escondidas. Cordas guiavam pelos labirintos de grama cortada do jardim. – Continuei dizendo.
Começou a chover mais forte, e me aproximei ainda mais para o resto da história. Suas mãos me entrelaçaram, e podia sentir nas costas as suas dez unhas. Prossegui
- Antes de morrer, ficara completamente sozinha na casa. Seu arquiteto morrera em uma emboscada, enquanto pescava na sua fazenda de Andaluzia, em uma das suas únicas folgas. Ironicamente, por uma Winchester .22 contrabandeada. Sem poder construir, a Senhora conseguiu fugir do inevitável por três meses, utilizando todas as passagens e os abrigos de seu covil infinito. Sem comer ou beber, morreu na sua cama, no quarto da torre. O ar hostil da casa fez com que seu cadáver fosse encontrado cerca de vinte dias após a morte. E não é como se essa não fosse sentida, as visitas simplesmente não saberiam como chegar à torre para encontrá-la em seu invólucro, em meio a tantos segredos e anotações sem sentido.
- Amor, me desculpe... Mas como sabe dessa história toda? – Perguntou, como se precisasse, de alguma maneira, achar o fio fantástico que lhe daria a falsidade dos fatos narrados.
- É uma lenda entre os corretores do escritório em São Paulo. Diz-se que, quando precisaram avaliar o imóvel, os corretores de Santiago encontraram cento e quarenta e oito quartos. Quando avaliaram de novo, encontraram cento e sessenta. A escada que dava para a torre descia vinte degraus e subia trinta e três. Uma das entradas na parede dava em um aquário e outra numa estufa. Quarenta homens precisaram de um aparato moderno e eficiente para não se perderem.
- E que fim deram na casa? Naturalmente não se compra um inferno desses. – Perguntou Anna.
- Deram talvez o único fim possível. Um excêntrico homem Libanês comprou-a e a transformou em uma espécie de ponto turístico em Peñaflor, até que um grande terremoto tornou irreparável a maioria de seus cômodos. A escada subterrânea da torre cedeu. A força da terra rompeu os postes do chão. Aquela luz que vimos não deveria, de forma alguma, estar acesa.
Ficamos acordados e em silêncio por alguns minutos. Sem mais uma palavra, Anna dormiu. Quando acordou, portanto, o fez decidida a ir embora. Quando estávamos no carro, passamos por um canto de estrada onde podíamos ver claramente a torre da casa de Peñaflor.
- Me diga... Essa foi mais uma das histórias que você inventa? – Me perguntou.
- Bem, a casa é assim, como a disse. O que tem as histórias que eu invento? – Retornei.
- Eu nunca sei a diferença das reais.
E partimos rumo a Santiago. O sol, que apareceu no caminho, nos dissipou dos espectros e da maldita casa que, até a fronteira entre as duas cidades, pareceu observar.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Perder-se no Labirinto das Letras

Não me cansei das metáforas. Poderia dizê-lo de mil maneiras, e aferi-lo a mil pedras ou a mil pássaros, mas a verdade é que esse texto é seu, como todos os outros que foram ou não escritos. Era inimaginável, todas as prosas eram duplamente suas, e o próprio ato de escrever era feito como se eu o fizesse no seu ombro, por entre os seus cabelos. Cada prosa foi mais peculiar que a outra e, com o tempo, comecei a te esconder. Começava a escrever, digamos, sobre o frio, mas sabia que nas entrelinhas, ou num pequeno ponto final, escondia você, tenra, com seus grandes olhos de raios furtivos. Começava a escrever sobre a escuridão e te escondia numa lâmpada de opalina que estava lá, a ser acesa. E de brincar assim, uma vez eu te perdi. Falava sobre a luz e te escondi em alguma palavra da qual não me lembrava. Procurei-te em todos os acentos, em todos os N’s, e sorri um sorriso aberto e quente quando notei que havia te escondido no próprio branco da página. Quando percebi o risco, passei a nos esconder, e de repente estávamos correndo por entre as letras como em um sinestésico labirinto de tinta.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O nada

Espanta-me a espontaneidade das idéias. Outro dia vi, cambaleando entre os becos de uns prédios, um anjo embriagado. Ser-te-á de grande sorte um encontro desses, sabes que tão raro é planarem baixo. Perguntei-lhe por que não voava. Disse-me “Estou muito triste, Marieta não devolve os meus olhares. Escrevi um poema, e ia deixar cuidadosamente em seu quarto quando me prensaram as asas na janela. Foi, de certo, a sua prima. Além disso, tentei subir e enrosquei nos exaustores de uns prédios – ai, como dói!”. E lhe digo leitor, não me surpreendi. Porque de fato, nada disso aconteceu. Mas essa foi, com certeza, uma bela introdução.
O que realmente me acontece é o que chamo de dor literária. Às vezes eu estou subindo as ruas que levam da minha casa até a rodoviária, e me vem uma ânsia de espirrar essas palavrinhas de sempre. A vontade, esses dias, foi da palavra “selênica”. Queria atribuí-la a uma criança, mas ao perceber que deveria pincelar-lhe um cenário místico, um propósito e outros adjetivos, acabei dormindo. De qualquer forma, já a usei aqui. A minha dica? Saiba utilizar as idéias. E me ensine a fazê-lo também – estou cansado de perdê-las e doá-las a outros escritores, como a palavra “Ametista” que eu doei para descrever os olhos de uma personagem de um amigo. Isso tudo, por não escrevê-las quando as penso. Se pudesse escorrer tinta dos lábios e tatuar nas costas, enquanto balbucio as linhas do texto, seria o ideal. Se pudesse nem escrever, ainda melhor. Mas vem essa dor, rói os ossos dos dedos e escreve por mim.
Quis descrever o céu do parque, mas me passou um corvo; quis descrever o corvo, mas surgiu um homem e o seu bigode. Voltei para a casa. Agora, escrevendo sobre o episódio, começou a chover, molhando a ave e o bigode na história. Uma menina que iria aparecer ficou com medo dos trovões, não saiu e não conheceu o meu herói. Assim me fogem as idéias, como a areia por entre os dedos, como o vento a assoviar por entre os fios de cabelo. Queria dizer que é do anjo ou da Marieta, mas, no fim, devo me perdoar – esse é só mais um grande texto sobre o nada.
E eu nem sei se Marieta é mesmo um nome...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O céu peculiar de hoje

O tempo me escapou dos olhos num fenômeno raro. Penso tê-lo citado uma vez a ti, numa tarde em que as nuvens caíram baixas e oblíquas, o céu entoou um vermelho sobre a minha cidade, e choveu forte. Era-me certo que as faixas vermelhas nas bordas do horizonte eram cidades iguais a minha, onde as coisas espelharam o mesmo tom, como a água e os pequenos troncos de um aquário sob o néon. Era-me certo que nesse dia as mesmas bordas estavam todas esbranquiçadas; caía-me a poeticidade de que delas alguém apontava sabendo que a cor e o sol dormiriam hoje no canto de cá.

Atribuo-me, também, noutra citação. Afirmei-te que, por mais colérico que estejas, o céu tem a capacidade de incitar os sorrisos em seu espetáculo. Hoje, porém, me provei errado. Sequer o notei, ao ponto de que as nuvens já se dissipavam e já crescia a escuridão da noite, e o culpado foi o próprio tempo que escapou dos olhos. Ele me roubou o sorriso do céu, mas falhou miseravelmente em tomar o sorriso que me traz a sua voz, que veio quando eu disse, por um motivo qualquer, uma palavra com a entonação que você a deu. Pudesse, ecoava a mesma palavra no céu vermelho até que ela perdesse seu sentido. Essa palavra é “Muito”. E me acendeu a necessidade e a existência de mesclar não a palavra ao céu, mas você à palavra.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Arquitetura

A criação não se espera na arte. O bom escritor, como o arquiteto raro, não se nutre da admiração dos leigos. A obrigação é de erguer, no domínio dos sentidos ou nos quartos da memória, a elegância de um mundo novo. Assim se faz falha a casa bela, com as saudades de costume e os lamentos de um só mestre e tempo, e assim falham os poemas de amor com os usuais arranjos e as mesmas abóbodas. É necessária a casa peculiar, mesclando cores que se destoam, para o dono igualmente singular. Há também a ambição dos que escrevem ou erguem: a casa tida. Não segue fôrmas e, quando a vê, sente uma nostalgia modesta de já a ter possuído. A casa tida é um truque de difícil governo para os arquitetos, afinal se encomenda a arte pelo gosto. O escritor tem a dádiva de fazê-la pelo próprio, encontrando os leitores para as palavras. Aos de Drummond bastou uma pedra. Aos meus, duas cidades e uma poetisa.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Requiém do Sol

Luzi pontualmente, por todos os anos e olhos, e aqueci. O meu ímpeto egoísta, de negar a luz, passou à ideia de raiá-la toda a ti, desde a primavera em que choveu-te e me cuidou tão tenra. A distância desfez-se domada. Chuvas finas e calorosas vieram solar a terra. Logo entornamos o céu de um espetáculo além, e as pessoas que mirassem-no, sabendo onde fitar, nos encontrariam juntos; um curto arco-íris nas bordas de uma montanha ou na face espelhada dos prédios. Mas fez-se o outono, e os olhos penderam à terra.

Meu brilho agora cresce cessante, como se adormecente. Obrigam-me ao claustro de algumas janelas, de onde fito à exaustão, procurando-te em cantos distantes, nos finos fios que parecem atar as nuvens ao chão e que te precedem. Obrigam-me a chama fraca, que toda lhe direciono, mas que não basta, e que não chama. Entrego-me ao ofício de te esboçar. Quase te vejo. À noite, quando vem tocar o meu teto e, submerso em uma orla reclusa, ergo os raios como os braços ao seu encontro. Outrora, entre as árvores de um campo, vejo tecer seus fios...

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Ao leitor

Pela vaidade desses dias, deixei abrir uma fenda de dois meses entre essa prosa e a passada; trazendo agora a chave de um questionamento que sequer me coube fazer. O fato é que o escritor mais prolífico tem os textos não da musa, mas do anseio de obtê-la, de tocá-la e, não obstante, das miragens que os envolverá quando, e se, suas prosas nascerem reais. E me fluiu constante, nos meses anteriores, afogados em um só anseio intimista, de dois escritores, em encontrar o que chamei de refúgio e enseada. Mas hoje temo ter chegado a uma bifurcação de estrada. O que cuidei escrever, em cinco dos meus últimos textos, em metáforas distintas, tornou-se real por cinco vezes, como se ouvissem todas as súplicas.

Porém, se for o anseio a representação máxima da escrita, que faz o escritor quando existe no mundo que criou? Creio não haver poeticidade na resposta que é, em si, a própria fenda. O refúgio, a enseada... Afirmo: por mais metáforas suspensas ao uso, e pelo vocábulo infinito da língua, escrevê-la é se entregar a inexatidão e trair os sentidos. Não escrevê-la é um egoísmo que me cabe. É a memória mais terna que tenho, e não pretendo simplificá-la ou àqueles olhos. Posso, para deixar-te com algo, dizer o que são aqueles olhos pelo efeito que eles tem em mim. E digo-lhe, leitor, se fixaram de tal forma que, com certas peculiaridades, fecho os meus fiéis de acordarem no domínio daqueles que, em si, são a enseada no refúgio.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Indagação

Por um segundo, atei-me ao chão. Quiseram voltar a casa, os braços e os olhos, e lancei-os por detrás dos ombros, atirando-os na janela para soprar as cortinas. Bem sabe, porque vistes. As mãos queriam o metal frio da maçaneta, o ouvido o ranger das dobradiças na porta, e não fosse mais forte que me imaginava, estaria lá a conjugar os termos para a estadia. Mas pendi os passos e fui.
Se não verteu no jardim, não o faria agora. Desafiei-me a não pensar na indagação, sentei a esperar o ônibus e por alguns momentos fitei a lua crescente, em sua cor de ferrugem – até que enfraqueci. Por que fazer da noite um arco que separa, varrendo os dois sóis da menina? Arrastando, em um estado letárgico, onírico? Por não estar ali, por não ter casa que não é teus olhos.
Recompus-me. Mirei a gente de uma casa verde, e como se entrelaçavam na cozinha enquanto um deles preparava café. Tinham de ficar acordados. A janela projetava a angústia, o alvoroço, e me teve até trair-me um canto do olho, com o ônibus que me chamaria de volta. E se voltasse? Se me mantivesse firme como uma torre de mármore, trouxesse no semblante o convite das horas, não haveria recusa.
São, desisto dos devaneios. Fixo sobre o mostrador do relógio digital, e no virar dos números vermelhos a fim de apressá-los. Embarcar – devo embarcar. É o último ônibus, e se embarcar, ainda que descanse a cabeça no vidro a pensar, como quem fita além do monte e quer rasgar o céu, a intenção não me trará aqui.
Devo embarcar – se chover, não há o que faça. Os trovões me inquietarão e o estalar da água no meu telhado de ferro calarão a própria voz, e o corpo irá. Caminhará cada vez mais rápido através das ruas, das gotas e faróis de carros. Devo embarcar, mas o ônibus não vem.
Temo que nunca virá.

terça-feira, 29 de março de 2011

Quero a chuva além da chuva

Vamos procurar o nosso refúgio. O sol o encontra no mar, para diluir sobre as ondas e cair no fundo, bronzeando alguns rochedos e só - o sol se reserva até o próximo raio. As nuvens o encontram na chuva, recolhendo os olhos, reduzindo o fitar, e a chuva o encontra estalando as gotas no telhado, oscilando a sua voz com a dos sonhos em uma madrugada. Fortaleço a proposta, procuremos a nossa enseada. Não há navio que não se entrega a um porto, e assim nos atentaremos a luz do primeiro farol. É o nosso renascer.

Já não basta escorrer na janela, quero a chuva além da chuva.
Compartilhar o mesmo telhado. Vamos, amor... procuremos, amor...
É nosso por direito.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Periélio

Nascerá de nós um dia sem relógios. Darei à manhã um índigo sem nuvens,
e darei flores as bromélias, e tons peculiares às janelas, sabendo o meu egoísmo – nesse dia, me extinguirei. Encontrar-te-ei no fim da tarde, e não haverá poente, para não haver traço algum de nossa fuga; iluminarei apenas os palmos a frente, e tua tempestade há de cobrir os passos detrás. Vamos ao oriente e ao norte. E na porção mais fria da jornada hei de estender os raios uma última vez, e pousarei em ti mais quente e vivo do que já me viu, fazendo nosso lar.

Fitará em todos os cantos, mas não vai encontrar-nos, e nascerá de nós um dia sem relógios – na ira do regente há de se adiar para todos. Nesses minutos incontáveis, viveremos do outro, insaciáveis do outro, num jardim de orquídeas; ouvirei suas histórias, compartilhando o calor que me resta... e apagarei. Enfim, outro astro assumirá o trono, e haverá manhã. Dirão os mais ditosos se tratar dos deuses, e não revelaremos a verdade. Por fim, se passará para as estrelas que nascem a história de nossa fuga, alertando sobre o amor, mas de forma tão surreal que as fará sonhar.

E nós, perguntas? Nós não diremos ao outro sobre esse dia, para não falhar nas palavras. Verás uma brisa fria chamar um sorriso meu, e terás toda a certeza; encostarás no meu ombro a fim de esconder sua reação, e se verter uma lágrima, a enxugarei com o rosto, mas não questionarei sua origem. Assim farás também comigo, até que a próxima estrela desça cá conosco...

segunda-feira, 14 de março de 2011

Amante

Pairou furtiva e tão rara,

Assoprou as nuvens, vestiu-se

De um amarelo-manteiga

E dormiu a contar as estrelas

Em seu cobertor...


Acordou, viu que fora traída.

‘Pois o Sol, que acariciando

A terra, verteu sobre uns olhos,

Tão grandes, castanhos...

Que perdeu-se no manto celeste!

E ficou...


As estrelas foram o júri dela.

E o divórcio foi mútuo de horas...

sábado, 12 de março de 2011

Serei breve, Lagoa

Os trovões não me preocupam, estou aqui, e aqui fico.
Uma vez se molha, e se chove no caminho de casa não há de se ensopar mais, pensava. E me enganei, veja, sequer saí de seus cuidados. Se chove é para molhar a tua face, e ouço despercebido do fundo, no meu telhado de água. Se há meia-lua a vejo, pincelada nas ondas, dançando. Entende, lagoa? Não me cansei.
Bem longe. Quero que você me trague, quero assentar no fundo com as pedras, quero ser lagoa. Não o rio que corre, a vida que passa, o amor que cessa, quero ser lagoa, eu e você lagoa, mansa e perpétua, infinita, lagoa. Vai tragando... O caminho de casa venta frio, e já nem sei se casa tenho. Consumindo, que se tiver fim será comum a nós, um conto triste, uma fábula triste, que se tiver fim será o fim da morte.

terça-feira, 8 de março de 2011

Seu presente













Quem são? Me preocupam os nossos leitores. As letras tratam de contar a chuva, algum punhado de estrelas e o leitor persiste; não protesta ou foca algum ponto fantasioso de vista, mas o leitor persiste, persiste. Hoje, presenteio. É o que me pesa: se eles estão aqui, devem ser nossos semelhantes, afirmar das mesmas características. Uma, a forma com que a ordem natural – chuva, sol ou uma lagoa – nos faz escrever de um êxtase contínuo e a outra, o tema que esses feitos revolvem, principalmente, você, deve os cobrir de um manto nostálgico e quente na semelhança com que têm, como temos, alguém a zelar pela eternidade dos textos.

Não basta o reconhecimento e como disse, hoje presenteio. Peço, amor, que não me guarde mágoas, mas darei a mão dos leitores uma memória nossa. Sim, é o que lhes ofereço e me custa, está lá como um espectro que corrói, a vagar nas veias, é o que lhes deixo e espero que, a cada leitor, dissipe-se de mim um tanto desse mal. O fato é que meu caro fantasma é a infinidade, não de tempo – dobrou se não mais de um minuto – mas do pesar. Para o casal no carro o compasso foi vago, falhou. Verá que havia ali um incitar de alma, um voto de silêncio que exigia um fim peculiar aquela noite, que como as demais de domingo me tinham indo na estação aos olhos inquietos da amada. E o tivemos.

Desci com a amada, que por motivo algum estava no meio do banco e exigia o movimento – a chuva, talvez, nos apressou assim – e a manobra feita exigiu que a repensasse e, uma vez no aberto, o carro avançou alguns metros. Agora leitor, nasce a lembrança. Ela me fitou e disse ‘nos deixaram’, ao que respondi ‘vamos indo’ com uma seriedade besta, afim de zangar a própria mentira e a desafiar. Ah leitor, dói expelir as próximas palavras. Apertei a mão no cruzar dos dedos para selar o convite, ao passo que ela se desesperou e disse ‘estou sem os sapatos’.

Fiquei (procuro-as até agora) sem palavras. Iriam voltar e buscá-la, mas naquele instante, nos poucos segundos presenteados, fomos libertos, beijamos o caminho de volta e vimos o sol renascer, trilhamos toda uma nova vida de cores. A despedida não narrarei. Parte de mim não voltou e não volta mais, e por estimar a natureza infinita desse casal, não narro a partir disso. É esse todo o mal, leitor. A infinidade. Qualquer dos ônibus ali que tomássemos, qualquer das paradas que fizéssemos, estaríamos juntos, um passo de jornada juntos, e é o melhor começo - a infinidade, leitor.
Mas aqui o presente acaba. A fantasia há de ser só minha.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

XXII - Um apelo

Bem sabes, leitor, dos fatos que precederam este capítulo. Não se espantes, portanto, se vestir o volume de mágoas, e leia-o em um acesso de raiva. Caso contrário irás, e disso estou certo, ser tragado pela mesma indagação e sairás a me amaldiçoar. Dito, não vem insciente, e com certeza vem, então vamos a tua parte: convoco essa tua ira para os relógios. Sabes que não há vontade que mova os passos, e o calcanhar retorce para voltar àquela casa só não mais que os olhos - vede que se a distância é fixa, praguejo contra o tempo - e se criaste a este casal alguma estima, há de ser a mim como um canhão.

Passei os últimos dias a temê-lo, descansar no ombro a lástima de que está invariavelmente em nossa contrapartida, e isso nada tem nos feito. Uso de ti agora leitor, último recurso. A tua mente sendo o meu projétil, e dispararei contra o tempo para estilhaçar como um coração de vidro. Há de ser minha vingança. Despedaçará por uma das pontas a fluir um rio de tempo manso, a lavar em si as blasfêmias dessa página. Um apelo, enfim, que se concretizar será a soma dos sonhos - e um milagre em parte - que espero pagar com os deleites dos capítulos seguintes.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Vigia de Órion

Será betelgeuse? Contaram-me os arcanjos, a fim de inquirir um sorriso, que há no céu o vigia de Órion. E cuida da terra e das plantas, mas cuida melhor dos amores. Contaram-me os arcanjos, que anuncia o tempo estio nas ondas e brilha mais em janeiro, com a noite aberta em manto. Não é betelgeuse, penso, vivendo perto do cinturão. Ainda que invoque as águas, o nosso vigia é distante, e não compartilha a noite, nem os olhos.

Esperei que dormissem, e entrei pelas asas de um - esperando palavras no sono. E disse: a oeste. A oeste de casa? Visto que a sua é para o leste, venho em seu caminho, no zelo do vigia. E a leste e distante, só pode ser Sírius - o prêmio do caçador, a prova. O fato é que os anjos não mentem, e assim sendo nossas janelas dividem a vista, amor. E tiveram de mim o sorriso, no conforto de termos a nós uma estrela no céu que é, sim, maior que o sol.

Em dias como hoje a venero na vinda, por compor a noite agradável e por iluminar esta sala nos cantos, madrinha da escrita. Mas é pela formalidade, sei que é por nós que assume o turno. É pelas letras e o apontar dos dedos. Ainda o faço pela certeza. Sente-se chegar com o poente, vê-se que as luzes caem e até que eu traga um novo dia, somos de Sírius - e tem guardado muito bem a nós. Portanto agradeça, e aguarde o próximo encontro.

Claro que a prosa é trivial. Você já sabia da estrela, e era sua antes de ser nossa. Se não batizada, ou sem as frases que ofereci, teria o mesmo e massivo brilho. É uma forma de gratidão, um ode a vocês. Te faria dos textos se não me tivesse achado, e te daria a estrela se acaso faltasse luz. É um golpe de sorte que os tenha na mesma noite. E um acordo com o ministro dos anjos para tê-los em todas.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sonhei com faróis

Sonhei com faróis, e não estava perdido no porto. Encontrava-me atrás da estrutura, a lua e o nimbo dourado não permitiam que olhasse para cima. Tinha areia na roupa e nos sapatos, quando me levantei e, a mão como um escudo dos olhos, entrei pela porta de ferro. O seu interior era, ironicamente, escuro. Subi a escada caracol para te encontrar, e você estava no topo, encarando a janela e o céu. Então acenei, e você nada disse - me aproximei, me abraçou e ainda era silêncio. Apontou para as nuvens, e como o refletor abaixo de nós rasgava em seu meio, as tornando bronze. Havia uma outra escada, para onde me levou e acima dessa, o topo da torre. Era tão alta, que esticando as mãos confudiamos as nuvens e essas, vendo que eram domadas, derramavam chuva.

Sonhei com os olhos abertos.
(Faça o mesmo, e imagine o fim como quiser...)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A poetisa e o mar

Seguimos, por um sem-fim de árvores entrelaçadas, por um canto de areia para ver o mar. A noite é luz da lua, o vento varre as folhas e o tempo não passa. Os olhos só vêm o mar e a poetisa - que todos lá, compartilhando da vista, compartilhando as estrelas não sabem: eu e minha poetisa entendemos o oceano. Eu o entendo pela poetisa com as palavras na areia; o mar é reservado, guarda os versos na ressaca. Decifro pelo céu, o mar é infinito, tem o tempo morto no alcance dos olhos; que das pedras o mar é um grande espelho.

O mar naquela noite não era um mar de água. Era a conquista, e dali a frente, a possibilidade. O mundo abriu-se a nós como um mapa aberto, e cada sorriso seu era um vislumbre disso. Mas permiti o silêncio e os olhos fechados, até acenarmos ao mar e com o primeiro passo, trilhar a rua detrás vendo que o sol renasce.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Despedida hesitante

Deixei a menina para seguir à casa e toda vida agora é uma sala de espera. Cada constelação que paira não me encanta os olhos. A brisa sigo como a uma rosa-dos-ventos, e o norte está para mim como qualquer ponto na ida que conserve a alma na sua voz ou cheiro. Distraio-me então com as luzes. A da lua quando dissipam-se as nuvens, as da cidade quando esta me falta.

Odeio o cinza. Veste o céu em seu tom hesitante, aterra o sol e nega a chuva. E quero chuva. Se esta vem sempre cinza, que não venha de um tom esbranquiçado, mas se forme escura, trazendo os relâmpagos, forte para escorrer na janela, longa para perfurar o guarda-chuva. Enfeitando o silêncio como a maré o faz. Que enlameie o curso da estrada alheia, se assim trouxer um vislumbre seu.

Rezamos aos anjos. Se ouviram, talvez falhamos nas palavras. Penso que o fizeram e, comovidos, pelejam lá por nós; guiando os astros que podem para tecer a noite. Se te é plausível a idéia, há de concordar que ela está mais iluminada recentemente. Sei que persistiremos contra as adversidades, e destruiremos a parede imposta um sorriso por vez. Porque nós somos luz. Não há parede ou labirinto sem fresta que nos escape. Não há escuridão que a nós se imponha. Porque somos como as estrelas e desafiamos o espaço no alcance dos raios, e desafiamos o tempo quando te deixo e ainda te amo em uma supernova.

Monólogo sobre a estrada

Vê do horizonte o fim? Não o há.
Mas outro defronte guarda.
A estrada, finita, sucede-te,
Consome-te se tu caminhas,
Fecendo da certeza que fenecerás.

Soubesse sua capacidade,
Olharia o sol, o inebriaria,
Extinguiria-o, caso quisesses.
Afogaria em ti todos os lagos.

Vê do horizonte o fim? Há fim!
Perpetue a ti o contornando.
A estrada da estrada, vede,
Tu, de Crônos, és a ampulheta,
E ele preso a ti, vociferando.

Duo

Havia som, mas não havia propósito. A flauta não o criou, mas do seu tom fez-se como o próprio não reconhecia; e assim te mostro o outro eu, do poema que nunca escrevi. Quando a flauta canta, não separa-se do som. Se a tem no vácuo, a tem vã - como o som vulgar, sem notas. Se me tem sozinho, não me tem. Posso ostentar parte dos sonhos, tão somente. Se me tem no seu zelo, me tem incessante, me tem e me vê, como eu não me pensava - fundido a ti, fazendo música.