sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A Casa de Peñaflor

O fato ocorreu em uma terça-feira fugidia. As árvores arrastavam sua sombra através do vão da porta como pequenas mãos estendidas. Anna dormia profundamente. As paredes de madeira eram iluminadas por uma única lâmpada, que pendia de um fio vermelho e balançava com o vento forte. Se fora ela que a acendeu, não perguntei. A viagem até a cabana, por entre as ruas insólitas de pedra e musgo de Talagante, no Chile, e rumo a Santiago, foi a mais tempestuosa de todas. A chuva não cessou um segundo e os únicos alívios na noite sem lua eram as luzes, fracas e azuis, do painel do carro. O frio era absoluto, e o cansaço nos adormeceu no minuto que chegamos à cama, ou talvez antes, numa pousada na encosta de uma lagoa.
Agora, enterrado nos cobertores de lã da estalagem, observava-a dormir, e os pequenos reflexos do seu corpo para o frio matinal. Quando acordou, permaneceu imóvel e disse:
- Ainda está chovendo?
- Sim. E está ainda mais frio do que ontem – balbuciei.
- Onde exatamente estamos? Já estamos em Santiago? – me perguntou, com seus olhos grandes de súplica.
- Aparentemente, estamos nos sítios de Peñaflor. São duas horas de viagem até Santiago. – informei-a, ainda sob os cobertores de casimira – Mas podíamos passar o dia aqui, e seguir o rumo amanhã.
Acenou com a cabeça e fechou os olhos. As sombras debaixo da porta continuavam a dançar e se ouvia o som da chuva fraca estalando na lagoa.
- Amor, me conte sobre a casa de ontem... – pediu-me, se apoiando sobre o cotovelo – você insistiu que a conhecia e a sua origem.
- Bem... Para começar, aquelas luzes não deveriam estar acesas. A dona, pelos maus cálculos, morreu a cerca de meio século.
- Quando você começa por “Para começar”, é história longa.
- É mais longa do que me lembro. – Afirmei.
Eu passei o início da manhã pensando na casa. Perdemos-nos pelos campos e paramos nos domínios de seus grandes portões, entalhados de ouro e bronze, na noite anterior. Duas luzes na torre, como os olhos amarelos e enérgicos de um felino, eram a única luz visível em quilômetros de mata e vultos duvidosos.
- Não me lembro o nome de sua proprietária. De qualquer maneira, nunca foi conhecida pelo nome. Casou-se cedo com o herdeiro da fortuna das armas Winchester, John, que possuía na época a segunda ou a terceira maior herança das Américas, acumulada entre acordos com o governo na primeira guerra. – Disse, e Anna chegava mais perto, entrelaçando os pés e as mãos com as minhas sob o cobertor. – Já possuíam muitas propriedades, como as notórias mansões em Connecticut, somando quase um terço do estado. Numa dessas casas a filha do casal morreu, e eventualmente o próprio John. As causas ainda são misteriosas.
- Não esperava uma história de terror. Você sabe que eu não gosto dessas. – interrompeu Anna, já mais desperta e atenta.
- Está mais para uma história sobre a insanidade. – afirmei – Meses após a morte de seus entes, a Senhora não passava uma semana bem. Estava sempre pigarreando, tossindo, com febres, sendo encontrada em um estado mais que letárgico inúmeras vezes. Os doutores não sabiam o que fazer. A família tinha fundamentos espíritas, e a única resposta que a Senhora encontrou, dentre a medicina e a religião, seguiu. – Continuei falando, em um fervor inconcebível de dono da história – A sua guia espiritual lhe informou que a causa da morte, tanto da filha quanto do marido, era a de uma maldição insólita. Todos os espectros de todos os mortos de combate por rifles Winchester vagavam nos mesmos corredores de sua casa, procurando se vingar daqueles que impulsionaram sua fatalidade.
- Em quantos espectros falamos? – Perguntou.
- Em centenas de milhares, ou à borda de um milhão. Na época entre as guerras só se comprava um Winchester para dar cabo de amantes ou da própria vida. Mas o saldo vem desde a conquista do oeste estadunidense. Na segunda guerra, morrer pelos seus canos únicos já era considerado de mau gosto. Vá, um milhão. Mas a senhora não acreditou no ato. Apenas meses mais tarde, ao passo que os via entesourando os espelhos e as vidraças, considerou mudar-se. Viajou por toda a América do Sul, até que seu cocheiro se perdeu e o cavalo caiu morto aqui em Peñaflor, às encostas de um grande terreno e uma modesta casa amarela. É a casa que vimos ontem na escuridão.
- A casa não parecia modesta. A comparação a um castelo parecia modesta. – Disse, me olhando com deboche.
Começava a ventar mais na pousada, e a lâmpada de filamento formava um círculo de luz no chão que caminhava pelo quarto. Da janela, perpendicular à porta, podíamos ver uma só nuvem massiva e negra. Prossegui:
- De fato, a planta original da casa hoje corresponde à base da torre principal. Em cerca de um mês a Senhora ergueu inúmeros quartos para as acomodações de seus criados, uma piscina, e reformou toda a pintura interna. Viveu bem lá por cerca de seis meses. Sua vidente, que dividia também as premonições do sonho, percorreu o labirinto de ontem para lhe entregar uma mensagem pessoalmente. Disse-lhe que os espectros estavam na casa. Sua única chance de não contrair os agouros estava em estar, constantemente, construindo-a e os aprisionando lá.
- Não funcionou, presumo.
- Funcionou um pouco. Nos primeiros meses, construía um poço, uma chaminé ou um salão para jogos, os reformando sempre e sem necessidade. Sua única escolha excêntrica era a completa ausência de janelas ou de espelhos. No mais, os arquitetos chilenos não protestavam. Queria vedar-se dos vultos, mas não pôde fazê-lo com as vozes, que cresciam vociferando em sua orelha, ecoando pelos longos corredores. Perdeu sua lucidez como quem perde o fôlego. Passou a construir com um só arquiteto fiel, e da velocidade que perdeu ganhou no engenho de suas obras. – Parei a fitar Anna.
Estava atônita e sem palavras. Começava a esfriar ainda mais. A história foi interrompida para que eu achasse um outro cobertor de lã no armário empoeirado e que estocava grande quantidade de tudo.
Sua primeira foi a torre. – continuei – onde passou a dormir e onde morreu vinte anos mais tarde. Os pisos eram peculiares. Com a luz adequada, eram pretos vistos de um lado do quarto e inteiramente brancos vistos do outro. Às vezes não dormia. Acendia as luzes da torre e as empregadas, que conversavam escondidas em uma das cozinhas, não demoravam a ouvir seus gritos. Com o tempo, dispensou também as empregadas, como os jardineiros e os rapazes que cuidavam da piscina, de modo que a casa passou a exibir inúmeras teias de aranha e o descuido de um templo abandonado. – Não conseguia parar, e os olhos de Anna certamente não o queriam – Se deu a construções excêntricas. Seu único arquiteto, um homem com quase o dobro de sua idade, era pago para toda sorte de insultos. O número de cômodos subiu de quarenta para cem em poucos anos. Os corredores escondiam passagens secretas, portas que davam à lugar nenhum ou a paredes e escadas que davam no teto.
Assim começou um verdadeiro jogo entre a Senhora e as miríades de espíritos que habitavam sua enorme casa. Diversas anotações, em riscos que somente ela entenderia, pintavam os corredores e indicavam as câmaras escondidas. Cordas guiavam pelos labirintos de grama cortada do jardim. – Continuei dizendo.
Começou a chover mais forte, e me aproximei ainda mais para o resto da história. Suas mãos me entrelaçaram, e podia sentir nas costas as suas dez unhas. Prossegui
- Antes de morrer, ficara completamente sozinha na casa. Seu arquiteto morrera em uma emboscada, enquanto pescava na sua fazenda de Andaluzia, em uma das suas únicas folgas. Ironicamente, por uma Winchester .22 contrabandeada. Sem poder construir, a Senhora conseguiu fugir do inevitável por três meses, utilizando todas as passagens e os abrigos de seu covil infinito. Sem comer ou beber, morreu na sua cama, no quarto da torre. O ar hostil da casa fez com que seu cadáver fosse encontrado cerca de vinte dias após a morte. E não é como se essa não fosse sentida, as visitas simplesmente não saberiam como chegar à torre para encontrá-la em seu invólucro, em meio a tantos segredos e anotações sem sentido.
- Amor, me desculpe... Mas como sabe dessa história toda? – Perguntou, como se precisasse, de alguma maneira, achar o fio fantástico que lhe daria a falsidade dos fatos narrados.
- É uma lenda entre os corretores do escritório em São Paulo. Diz-se que, quando precisaram avaliar o imóvel, os corretores de Santiago encontraram cento e quarenta e oito quartos. Quando avaliaram de novo, encontraram cento e sessenta. A escada que dava para a torre descia vinte degraus e subia trinta e três. Uma das entradas na parede dava em um aquário e outra numa estufa. Quarenta homens precisaram de um aparato moderno e eficiente para não se perderem.
- E que fim deram na casa? Naturalmente não se compra um inferno desses. – Perguntou Anna.
- Deram talvez o único fim possível. Um excêntrico homem Libanês comprou-a e a transformou em uma espécie de ponto turístico em Peñaflor, até que um grande terremoto tornou irreparável a maioria de seus cômodos. A escada subterrânea da torre cedeu. A força da terra rompeu os postes do chão. Aquela luz que vimos não deveria, de forma alguma, estar acesa.
Ficamos acordados e em silêncio por alguns minutos. Sem mais uma palavra, Anna dormiu. Quando acordou, portanto, o fez decidida a ir embora. Quando estávamos no carro, passamos por um canto de estrada onde podíamos ver claramente a torre da casa de Peñaflor.
- Me diga... Essa foi mais uma das histórias que você inventa? – Me perguntou.
- Bem, a casa é assim, como a disse. O que tem as histórias que eu invento? – Retornei.
- Eu nunca sei a diferença das reais.
E partimos rumo a Santiago. O sol, que apareceu no caminho, nos dissipou dos espectros e da maldita casa que, até a fronteira entre as duas cidades, pareceu observar.