terça-feira, 2 de outubro de 2012

Tu és maldito


Bebi. 
Eis que a bebida calou o bom senso e deixou-me à mercê de sentimentos que, geralmente, não tomariam controle com a facilidade que tomaram. 
E eu vim até ti fazer com que me notasses. 
Quiçá esta carta seja mais uma para esquecer. 
Eis que um dia éramos “eu e tu”, que por acasos tornamo-nos “nós”, e por descaso da parte dominante, viemos a tornar-nos um novo “tu” e “o que restou de nós”(eu).
.
Tenho ânsia por querer me livrar desse sentimento palpitante, dessa ansiedade inexplicável e desse eterno enjôo mental que a tua recusa me causa. Há mascaras, não negue. E eu queria tocar o rosto perdido detrás desse material inexpressivo que esconde tua face. Eu quero te conhecer verdadeiramente, ir além desse resquício de personalidade que tu disponibilizas para transeuntes ocasionais. Quero resgatar no fundo desses teus olhos pretos o brilho incólume que essa seda ralhada esmorece.  E quero que tu me digas qualquer coisa, o que quer que tu desejes dizer pra mim. Contanto que proves que não me amas e não quer me ter ao teu lado pela eternidade. Instigas, convenças. Quero que tu me faças triste. E também quero que tu falhes em tudo isso. Tira essa tua máscara que tu és demasiado perfeito pra privar o mundo de ver-te, e vem te mostrar ao meu lado, que eu te acompanho pra onde fores. O que eu quero, na verdade, é ter o mundo só pra pô-lo ao teu dispor. 

Eu sou grande por tê-lo tido, e pequena por tê-lo perdido. Esquecer de ti seria esquecer do que de melhor me aconteceu, minha mais emocionante e absurda aventura. E eu não sei se quero isso. Mas esquecer de ti também seria esquecer minha maior desgraça. O pior e mais derradeiro ocorrido que tive em vida. E disso tenho certeza que quero esquecer o quanto antes. 

Pelo menos depois que terminamos você aprendeu a ser pontual. Toda noite nos encontramos no mesmo horário, sem o menor atraso. Chato é ter que acordar em seguida. 

Perdi a noção de como e quando era minha vida antes, daquela porção de minúcias que mais tarde me faria lembrar de ti no mais simples trejeito semelhante em outrem, perdi também a noção do que é relativo à vida, uma vez que desaprendi a viver a minha em plenitude por ter deixado a maior fração dela pra trás, lá naquela cidadela distante. 

Só afirmo com plena convicção e certeza que nós nos amamos muito. Amamos, que pode estar no passado ou no presente, dependendo do que determinar. Se algum dia tu pensares que sou digna de ter-te perto de mim novamente, se pensares que o presente não lhe agrada como um dia lhe agradou ou se quiseres reviver um instante ao meu lado, não hesites. Tu sabes meu endereço. Jamais me absteria de dar-te esta chance, principalmente por ser tudo que anseio há tanto, tanto tempo mas não choro há dias. Perdoa-me pelo maldito.

terça-feira, 18 de setembro de 2012






Receba a honra de compôr um título a este.

De um lado minha sabedoria; do outro a impotência de fazer-lhe saber:
Os dentes em “V”; a minha disposição.
A dupla de pelos no dedo anelar; meu desejo de nele estar.
A cicatriz na raiz dos cabelos; meu amor próprio.
É destro de mão e canhoto de pé; meu pedido de perdão e confiança.
O cobertor sem “R”; o sorriso que eu quero ser.

O coração é grande, destaca o lado do peito; minha perseverança.

Pés trinta e nove; meu amor mil.
O desejo pelos seios; meu suor ao ter seu corpo.
A pinta rasa no queixo; minha saudade (nada rasa).
O irmão vivo o compôs; a chance.
A sua cor é o azul real (reino das palavras); o amarelo dos meus olhos não mentem.
O tempo para ele; para mim.
As lembranças dele; minhas palavras não ditas.
Sei o primeiro pensamento ao acordar e o último ao adormecer; meu desejo de continuá-los sendo.
Tenho a mais íntima sabedoria dele, entretanto não seu convencimento.

Minha fortuna foi maior que a de Diego, este lhe seria mais velho. O veria pôr-se entre os coqueiros e tornar-se Mestre. Eu o vejo. O ouço. Depois de perder-se no reino que habito, ele pensa palavra por palavra num banho no escuro. Mas não as torna em resposta. As águas que lhe banham escorrem para a lagoa e nela passeio, ele sabe. Eu sei. Que ele persegue carros em volta de sua cabeça e os evita dizer em verdade. Ele não quer calar-se, e sim juntar-se ao poeta. A parceria me manterá viva, para que após a cura haja nós. Ele sabe o meu sonho e este lhe é toda a sabedoria sobre mim. Eu sou isso. E ele é verdade.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Repare nas Nuvens

É um fato de todo comum que, após muito tempo olhando para as nuvens, elas começam a tomar forma. Eu, sendo míope, enxergava nelas as mais extravagantes. Com o tempo, passei a entender que as nuvens se formavam de acordo com o meu humor. Não deixei, de todo, essa ideia.
Hoje, queria que chovesse. Queria que escorre na janela, para que eu lesse meu livro.
Calmo e sereno, eu dormiria, após tanto tempo em claro.
Calmo e sereno, evocaria em mim o mundo das chuvas e enfim me calaria para dar alma e asas ao poeta.

O reino das palavras

Para as noites de insônia, para as noites de tédio, para as noites em geral escuras e frias. Para agradar aos olhos, para entoar uma canção própria aos ouvidos, para dar força e assim mover. Para dizer as palavras não ditas, as metáforas não feitas, como pensamentos desconexos antes de adormecer.
Para você: O Reino das Palavras.
Explore uma vez por dia para descobri-lo aos poucos e por completo.
Verá a história do menino e seu velho, verá a história do Espelho de Jorge Luis Borges, verá a história do monstro cinza que aterrizou um vilarejo ao norte, verá a história que tem para contar uma velha que borda ao passo que a citada criatura assola o citado vilarejo -- verá a fábula sobre os gigantes que andavam na terra e nos ensinaram a arte de cultivar, verá o conto da loja que vendia lembranças, verá o conto do menino que criou, dando seus nomes próprios, seu mundo peculiar. E muitos outros.
Explore, uma vez por dia, para conhecer por completo o meu reino. Onde impero absoluto.
Assim, só assim, poderá uma pessoa (e é esta você) desbravá-lo.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Guarda no Castelo

Ante as pedras, à construção perfeita - um Cavaleiro só, de aspecto sombrio, guarda seu castelo. Porém é, de fato, seu? É seu trabalho guardá-lo, e é seu dever mantê-lo, por entre as chuvas torrenciais e as corriqueiras nuances do Sol. Mas é, de fato, seu? Diriam, então, que não o pertence, mas ao Rei a quem o Cavaleiro deve o cargo.
Afinal, ele assistiu nascer, erguer-se e escolheu tons e pedras - mas é, de fato, seu dono? Apenas um dos dois é imperecível, porque perfeito em si. Mas não o Rei.

Então diriam, imagino, ser o Vento*, que moldou as pedras. Ou a terra, que geriu firmeza.
Ou o ser que de um sopro ou infinitas palavras fez o que se compreende por vento e o que se compreende por terra. Porém nós, todos aquém, não compreendemos quem é, ou se alguém de fato é, seu dono.
Algum desses, todos metáforas vis, podem ser o palpite. Mas não o meu.

Compreendo que sou eu seu único dono e mantenedor, pois dos tempos imemoriais escrevo e guardo nesse Castelo todas as minhas prosas. Ora templo, ora cemitério, jamais abandonou.
O que é meu e está lá é, ora lenda, ora mistério.
E permanecerá no porvir a incerteza do que exatamente o poeta guarda no Castelo.



*De um outro castelo, este não é dono senão seu maior temor.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Princesa dos Olhos

Você o tem, pelo mérito de tê-lo criado. Não existia sorriso. Existia, sim, motivos para sorrir, mas não eram os motivos desejados. Existia, sim, motivos para andar por aí, tropeçante, com olhos grandes, brilhantes - mas, novamente, não eram os almejados. Você foi o primeiro motivo. Você é, ainda é, o único.

Eu andei longe para encontrar. A princesa da terra distante, você foi. Agora, não mais distante, ainda é.
A princesa dos olhos. Meus e teus olhos.

Quando cuida, quando esmera, merece.
Frases desconexas, como pensamentos.
Pensamentos meus que são seus, como os sorrisos.

Quando me viro, descontente de ingrato, e sorrio ao mundo que não te é, sorrio com o sorriso que você me deu. Quando não sorrio, abraço a causa amarga e doce que você é. Dependente, te sou e te contemplo.
À princesa dos olhos.

Não há nada mais forte em mim, que senti-la me sendo. O medo, mais fraco é. O mundo, aos joelhos cairá. Que mais vale da estrela afogar-se num lago e bradar sua mansidão - o brilho, perceba, é passageiro.
(Desta metáfora, somos a estrela, o lago, a mansidão e o brilho.)


Disseste ser a mão a parte em mim Kleber. Agora, mira os sorrisos. À parte, em si Anna, em mim.
Os seus, desenhei como engenheiro dos céus. Não todos, mas os meus sorrisos, ergui-os.

Convida-me a sorrir mais forte. Use as mãos como anzóis dos meus lábios, se couber e agradar a metáfora. Convida-me novamente ao seu reino das palavras.
Princesa dos olhos, é.

Decifrar a mente pelo enlace das mãos.
Decifrar a alma pela refração dos meus olhos nos seus.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O rascunho a teu punho é bem melhor

"Nós. E a noite estendida sobre,
e um outro teto antes. Nós, somente,
E todo o futuro para nós,
como uma criatura,
Uma porta que devora no fim do caminho
Nós.
A noite estendida sobre, e um outro teto antes
Outros de nós no ar que nos contorna.
Não como nós. Aquém de nós.

O futuro para nós como uma criatura
Uma porta que devora no fim do caminho,
E sua presença lá indubitável sendo,
As estrelas, para nós como o futuro e a porta,
Já habitando o céu para onde ascenderemos,
Eu e você, amor, quando deixarmos vivo
o sentimento nosso que a nós transborda,
A intenção pura e infinita que a nós concede,
o meu ou o seu deus, ainda não sabemos.

(Meus braços, meus braços te envolvem)

Meus braços te envolvem
Seus olhos me guardam,
Estamos protegidos e queimamos,
Seguros (de nós mesmos), no escuro e no silêncio
(Como a vela que queima na igreja)
Como a fogueira dentro da caverna
num dia de tempestade.

Responderemos ao futuro
imitando às estrelas."
Me perdoe, pequei em não anotar a data na folha de papel.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Nesta prosa

Venha. Junte-se a mim e veja, através das janelas, o mundo calado das chuvas. O mundo imóvel, como que assombrado, onde passam as pombas e os pardais, voando, ao som do vento que exila as folhas; e ainda, nessas paredes de um mundo próprio, temos o silêncio do abrigo. Como os desertos. O sol estilhaça, e chegará a noite das águas, esse manto sem lua. Mas estamos aqui, com os pés descalços sobre a ardósia, e sua boca imensurável sorri ao espelho que é o vidro; espelho dos meus olhos em que pousam seus carinhos, como estrelas fulgidas, como pequenos vaga-lumes; e então te percebo. Quer abrir a sacada, os braços como asas enormes, quer perder-se na noite, voar como nos sonhos, em uma volúpia crescente. Mas por hoje, ficamos; alheios as chuvas como os pássaros sob a oliveira, como outros sobre as nuvens.

As paredes escurecem, o mundo adormece e o resto é de outra prosa.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Buraco em Montes Altos

Quando começaram a retirar toda a parafernália do local, o buraco em Montes Altos já abria cem metros de diâmetro, tinha causado centenas de fatalidades e o furor das principais emissoras televisivas, que por si impulsionaram milhares de visitantes e o episódio que você pode conhecer como “Os deslizes de Montes Altos”. Outras pessoas, como os moradores de cidades próximas, devem relatar por “O incidente de oitenta e cinco”. Independente do vernáculo, as duas definições resumem o período de oito meses, do fim de Abril ao começo de Janeiro, em que o prefeito Argélio governava os três mil habitantes provincianos e suspeitos de um município pacato; um molde maranhense dos shires ingleses e dos countys americanos.
Nessas cidades o tempo não foge como a nós. Portanto, dois caminhões que se chocaram em um domingo, tendo um deles tombado, afligiram no asfalto uma rachadura do tamanho das tangerinas, que permaneceu sem supervisão até a madrugada de segunda. Vejam só, as pessoas em Montes Altos tem a fama de serem presunçosas. Quando a caminhonete da prefeitura iluminou a fenda com um holofote, preso a um ferro na carroceria, os funcionários que deveriam reparar os danos pouco fizeram; coçaram os quepes e fitaram-na: o pequeno buraco, agora do tamanho do veículo, poderia arrastá-los para sabe se lá quantos metros subterrâneos. E assim pensaram, uns com os outros, no aconchego de seus colchões pobres, de feltro; resolveram que pouco ou nada poderia ser feito para remediá-lo, o maldito buraco, e foram ter em suas casas no subúrbio.
Quando a notícia chegou ao prefeito Argélio, de que a fenda não fora reparada, esta já estava maior e não demonstrava sinais de que iria, hora ou outra, desistir; engoliria a cidade toda. A única solução seria locar os tratores de Paço do Lumiar. Mas mesmo este município, que era o mais próximo, estava a horas de distância em uma estrada esburacada e alagada pelas chuvas mansas. As máquinas por hora atribuiriam dívidas exorbitantes. - Fora o trabalho todo... -, pensou Argélio na poltrona reclinável em seu gabinete. - Que fique assim.
As pessoas não protestavam, estando para o buraco como estamos todos para a morte: esperavam cheios de um otimismo vão. E assim ao caos se deu teor de castigo divino. Quando as avenidas principais foram consumidas, tomaram rotas alternativas; e quando as vendinhas ruíram, começaram a plantar no quintal, no encharque, no lodo. Mas andavam por aí sempre com um mal estar no estômago e, quando ouviam os ruídos do deslize de terra e asfalto, desatinavam a rezar, apertando as mãos em súplica.
Os primeiros mortos foram velados, visto que o cemitério era a alguns quilômetros do centro, com grande assombro. Mas uma vez que os postes foram aterrados, cessando a energia elétrica e rompendo os fios de telefone, a contagem deles se perdeu.
Nas ruas, estilhaçadas pela força dos deslizes, imperava o sentimento de derrota. Sair e ver o monstro, inevitável e voraz, o maldito buraco, com o só propósito de trabalhar ou de visitar alguém, foi desconsiderado. Alguns cidadãos se moveram até outras cidades. Mas, na grande maioria, os Altenses esperaram a morte em casa. E essa chegou, engolindo as vidas em uma fila circular concêntrica.
Quando as emissoras televisivas chegaram, o buraco já constava uma catástrofe nacional. Mediram cento e vinte metros de profundidade, todos de lama e escombros do que foi Montes Altos. Os analistas e os contadores obtiveram, em esforço coletivo, o valor da soma necessária para reparar o que se espalhou como “A boca do Inferno” no resto do país. Mas era óbvio que esse não era o ideal. A proposta, de relocar as pessoas nas cidades que cercavam a sua, não agradou a todos os moradores – a idéia de começar uma nova vida, e do trabalho necessário para tal, aterrorizou as famílias. Porém alguns, como Argélio, com uma enorme barba e já sem profissão, fugiram para morrer de fome no Rio de Janeiro. Os outros insistiram em continuar lá, onde dormia o buraco.
Ele permaneceu a ruir, mas eventualmente parou. Hoje, vinte e seis anos após o incidente, que se tornou uma fábula que entorna a preguiça, uma tragédia indelével da história maranhense, se encontram não mais que cem habitantes. Vivem de plantar alface e cenoura, na terra úmida da beira. E quando estão lá, olham para baixo, para o buraco, como uma grande criatura, morta de velhice, e não deixam de pensar pelos que sucumbiram, como penso agora, que descansem em paz.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A Casa de Peñaflor

O fato ocorreu em uma terça-feira fugidia. As árvores arrastavam sua sombra através do vão da porta como pequenas mãos estendidas. Anna dormia profundamente. As paredes de madeira eram iluminadas por uma única lâmpada, que pendia de um fio vermelho e balançava com o vento forte. Se fora ela que a acendeu, não perguntei. A viagem até a cabana, por entre as ruas insólitas de pedra e musgo de Talagante, no Chile, e rumo a Santiago, foi a mais tempestuosa de todas. A chuva não cessou um segundo e os únicos alívios na noite sem lua eram as luzes, fracas e azuis, do painel do carro. O frio era absoluto, e o cansaço nos adormeceu no minuto que chegamos à cama, ou talvez antes, numa pousada na encosta de uma lagoa.
Agora, enterrado nos cobertores de lã da estalagem, observava-a dormir, e os pequenos reflexos do seu corpo para o frio matinal. Quando acordou, permaneceu imóvel e disse:
- Ainda está chovendo?
- Sim. E está ainda mais frio do que ontem – balbuciei.
- Onde exatamente estamos? Já estamos em Santiago? – me perguntou, com seus olhos grandes de súplica.
- Aparentemente, estamos nos sítios de Peñaflor. São duas horas de viagem até Santiago. – informei-a, ainda sob os cobertores de casimira – Mas podíamos passar o dia aqui, e seguir o rumo amanhã.
Acenou com a cabeça e fechou os olhos. As sombras debaixo da porta continuavam a dançar e se ouvia o som da chuva fraca estalando na lagoa.
- Amor, me conte sobre a casa de ontem... – pediu-me, se apoiando sobre o cotovelo – você insistiu que a conhecia e a sua origem.
- Bem... Para começar, aquelas luzes não deveriam estar acesas. A dona, pelos maus cálculos, morreu a cerca de meio século.
- Quando você começa por “Para começar”, é história longa.
- É mais longa do que me lembro. – Afirmei.
Eu passei o início da manhã pensando na casa. Perdemos-nos pelos campos e paramos nos domínios de seus grandes portões, entalhados de ouro e bronze, na noite anterior. Duas luzes na torre, como os olhos amarelos e enérgicos de um felino, eram a única luz visível em quilômetros de mata e vultos duvidosos.
- Não me lembro o nome de sua proprietária. De qualquer maneira, nunca foi conhecida pelo nome. Casou-se cedo com o herdeiro da fortuna das armas Winchester, John, que possuía na época a segunda ou a terceira maior herança das Américas, acumulada entre acordos com o governo na primeira guerra. – Disse, e Anna chegava mais perto, entrelaçando os pés e as mãos com as minhas sob o cobertor. – Já possuíam muitas propriedades, como as notórias mansões em Connecticut, somando quase um terço do estado. Numa dessas casas a filha do casal morreu, e eventualmente o próprio John. As causas ainda são misteriosas.
- Não esperava uma história de terror. Você sabe que eu não gosto dessas. – interrompeu Anna, já mais desperta e atenta.
- Está mais para uma história sobre a insanidade. – afirmei – Meses após a morte de seus entes, a Senhora não passava uma semana bem. Estava sempre pigarreando, tossindo, com febres, sendo encontrada em um estado mais que letárgico inúmeras vezes. Os doutores não sabiam o que fazer. A família tinha fundamentos espíritas, e a única resposta que a Senhora encontrou, dentre a medicina e a religião, seguiu. – Continuei falando, em um fervor inconcebível de dono da história – A sua guia espiritual lhe informou que a causa da morte, tanto da filha quanto do marido, era a de uma maldição insólita. Todos os espectros de todos os mortos de combate por rifles Winchester vagavam nos mesmos corredores de sua casa, procurando se vingar daqueles que impulsionaram sua fatalidade.
- Em quantos espectros falamos? – Perguntou.
- Em centenas de milhares, ou à borda de um milhão. Na época entre as guerras só se comprava um Winchester para dar cabo de amantes ou da própria vida. Mas o saldo vem desde a conquista do oeste estadunidense. Na segunda guerra, morrer pelos seus canos únicos já era considerado de mau gosto. Vá, um milhão. Mas a senhora não acreditou no ato. Apenas meses mais tarde, ao passo que os via entesourando os espelhos e as vidraças, considerou mudar-se. Viajou por toda a América do Sul, até que seu cocheiro se perdeu e o cavalo caiu morto aqui em Peñaflor, às encostas de um grande terreno e uma modesta casa amarela. É a casa que vimos ontem na escuridão.
- A casa não parecia modesta. A comparação a um castelo parecia modesta. – Disse, me olhando com deboche.
Começava a ventar mais na pousada, e a lâmpada de filamento formava um círculo de luz no chão que caminhava pelo quarto. Da janela, perpendicular à porta, podíamos ver uma só nuvem massiva e negra. Prossegui:
- De fato, a planta original da casa hoje corresponde à base da torre principal. Em cerca de um mês a Senhora ergueu inúmeros quartos para as acomodações de seus criados, uma piscina, e reformou toda a pintura interna. Viveu bem lá por cerca de seis meses. Sua vidente, que dividia também as premonições do sonho, percorreu o labirinto de ontem para lhe entregar uma mensagem pessoalmente. Disse-lhe que os espectros estavam na casa. Sua única chance de não contrair os agouros estava em estar, constantemente, construindo-a e os aprisionando lá.
- Não funcionou, presumo.
- Funcionou um pouco. Nos primeiros meses, construía um poço, uma chaminé ou um salão para jogos, os reformando sempre e sem necessidade. Sua única escolha excêntrica era a completa ausência de janelas ou de espelhos. No mais, os arquitetos chilenos não protestavam. Queria vedar-se dos vultos, mas não pôde fazê-lo com as vozes, que cresciam vociferando em sua orelha, ecoando pelos longos corredores. Perdeu sua lucidez como quem perde o fôlego. Passou a construir com um só arquiteto fiel, e da velocidade que perdeu ganhou no engenho de suas obras. – Parei a fitar Anna.
Estava atônita e sem palavras. Começava a esfriar ainda mais. A história foi interrompida para que eu achasse um outro cobertor de lã no armário empoeirado e que estocava grande quantidade de tudo.
Sua primeira foi a torre. – continuei – onde passou a dormir e onde morreu vinte anos mais tarde. Os pisos eram peculiares. Com a luz adequada, eram pretos vistos de um lado do quarto e inteiramente brancos vistos do outro. Às vezes não dormia. Acendia as luzes da torre e as empregadas, que conversavam escondidas em uma das cozinhas, não demoravam a ouvir seus gritos. Com o tempo, dispensou também as empregadas, como os jardineiros e os rapazes que cuidavam da piscina, de modo que a casa passou a exibir inúmeras teias de aranha e o descuido de um templo abandonado. – Não conseguia parar, e os olhos de Anna certamente não o queriam – Se deu a construções excêntricas. Seu único arquiteto, um homem com quase o dobro de sua idade, era pago para toda sorte de insultos. O número de cômodos subiu de quarenta para cem em poucos anos. Os corredores escondiam passagens secretas, portas que davam à lugar nenhum ou a paredes e escadas que davam no teto.
Assim começou um verdadeiro jogo entre a Senhora e as miríades de espíritos que habitavam sua enorme casa. Diversas anotações, em riscos que somente ela entenderia, pintavam os corredores e indicavam as câmaras escondidas. Cordas guiavam pelos labirintos de grama cortada do jardim. – Continuei dizendo.
Começou a chover mais forte, e me aproximei ainda mais para o resto da história. Suas mãos me entrelaçaram, e podia sentir nas costas as suas dez unhas. Prossegui
- Antes de morrer, ficara completamente sozinha na casa. Seu arquiteto morrera em uma emboscada, enquanto pescava na sua fazenda de Andaluzia, em uma das suas únicas folgas. Ironicamente, por uma Winchester .22 contrabandeada. Sem poder construir, a Senhora conseguiu fugir do inevitável por três meses, utilizando todas as passagens e os abrigos de seu covil infinito. Sem comer ou beber, morreu na sua cama, no quarto da torre. O ar hostil da casa fez com que seu cadáver fosse encontrado cerca de vinte dias após a morte. E não é como se essa não fosse sentida, as visitas simplesmente não saberiam como chegar à torre para encontrá-la em seu invólucro, em meio a tantos segredos e anotações sem sentido.
- Amor, me desculpe... Mas como sabe dessa história toda? – Perguntou, como se precisasse, de alguma maneira, achar o fio fantástico que lhe daria a falsidade dos fatos narrados.
- É uma lenda entre os corretores do escritório em São Paulo. Diz-se que, quando precisaram avaliar o imóvel, os corretores de Santiago encontraram cento e quarenta e oito quartos. Quando avaliaram de novo, encontraram cento e sessenta. A escada que dava para a torre descia vinte degraus e subia trinta e três. Uma das entradas na parede dava em um aquário e outra numa estufa. Quarenta homens precisaram de um aparato moderno e eficiente para não se perderem.
- E que fim deram na casa? Naturalmente não se compra um inferno desses. – Perguntou Anna.
- Deram talvez o único fim possível. Um excêntrico homem Libanês comprou-a e a transformou em uma espécie de ponto turístico em Peñaflor, até que um grande terremoto tornou irreparável a maioria de seus cômodos. A escada subterrânea da torre cedeu. A força da terra rompeu os postes do chão. Aquela luz que vimos não deveria, de forma alguma, estar acesa.
Ficamos acordados e em silêncio por alguns minutos. Sem mais uma palavra, Anna dormiu. Quando acordou, portanto, o fez decidida a ir embora. Quando estávamos no carro, passamos por um canto de estrada onde podíamos ver claramente a torre da casa de Peñaflor.
- Me diga... Essa foi mais uma das histórias que você inventa? – Me perguntou.
- Bem, a casa é assim, como a disse. O que tem as histórias que eu invento? – Retornei.
- Eu nunca sei a diferença das reais.
E partimos rumo a Santiago. O sol, que apareceu no caminho, nos dissipou dos espectros e da maldita casa que, até a fronteira entre as duas cidades, pareceu observar.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Perder-se no Labirinto das Letras

Não me cansei das metáforas. Poderia dizê-lo de mil maneiras, e aferi-lo a mil pedras ou a mil pássaros, mas a verdade é que esse texto é seu, como todos os outros que foram ou não escritos. Era inimaginável, todas as prosas eram duplamente suas, e o próprio ato de escrever era feito como se eu o fizesse no seu ombro, por entre os seus cabelos. Cada prosa foi mais peculiar que a outra e, com o tempo, comecei a te esconder. Começava a escrever, digamos, sobre o frio, mas sabia que nas entrelinhas, ou num pequeno ponto final, escondia você, tenra, com seus grandes olhos de raios furtivos. Começava a escrever sobre a escuridão e te escondia numa lâmpada de opalina que estava lá, a ser acesa. E de brincar assim, uma vez eu te perdi. Falava sobre a luz e te escondi em alguma palavra da qual não me lembrava. Procurei-te em todos os acentos, em todos os N’s, e sorri um sorriso aberto e quente quando notei que havia te escondido no próprio branco da página. Quando percebi o risco, passei a nos esconder, e de repente estávamos correndo por entre as letras como em um sinestésico labirinto de tinta.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O nada

Espanta-me a espontaneidade das idéias. Outro dia vi, cambaleando entre os becos de uns prédios, um anjo embriagado. Ser-te-á de grande sorte um encontro desses, sabes que tão raro é planarem baixo. Perguntei-lhe por que não voava. Disse-me “Estou muito triste, Marieta não devolve os meus olhares. Escrevi um poema, e ia deixar cuidadosamente em seu quarto quando me prensaram as asas na janela. Foi, de certo, a sua prima. Além disso, tentei subir e enrosquei nos exaustores de uns prédios – ai, como dói!”. E lhe digo leitor, não me surpreendi. Porque de fato, nada disso aconteceu. Mas essa foi, com certeza, uma bela introdução.
O que realmente me acontece é o que chamo de dor literária. Às vezes eu estou subindo as ruas que levam da minha casa até a rodoviária, e me vem uma ânsia de espirrar essas palavrinhas de sempre. A vontade, esses dias, foi da palavra “selênica”. Queria atribuí-la a uma criança, mas ao perceber que deveria pincelar-lhe um cenário místico, um propósito e outros adjetivos, acabei dormindo. De qualquer forma, já a usei aqui. A minha dica? Saiba utilizar as idéias. E me ensine a fazê-lo também – estou cansado de perdê-las e doá-las a outros escritores, como a palavra “Ametista” que eu doei para descrever os olhos de uma personagem de um amigo. Isso tudo, por não escrevê-las quando as penso. Se pudesse escorrer tinta dos lábios e tatuar nas costas, enquanto balbucio as linhas do texto, seria o ideal. Se pudesse nem escrever, ainda melhor. Mas vem essa dor, rói os ossos dos dedos e escreve por mim.
Quis descrever o céu do parque, mas me passou um corvo; quis descrever o corvo, mas surgiu um homem e o seu bigode. Voltei para a casa. Agora, escrevendo sobre o episódio, começou a chover, molhando a ave e o bigode na história. Uma menina que iria aparecer ficou com medo dos trovões, não saiu e não conheceu o meu herói. Assim me fogem as idéias, como a areia por entre os dedos, como o vento a assoviar por entre os fios de cabelo. Queria dizer que é do anjo ou da Marieta, mas, no fim, devo me perdoar – esse é só mais um grande texto sobre o nada.
E eu nem sei se Marieta é mesmo um nome...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O céu peculiar de hoje

O tempo me escapou dos olhos num fenômeno raro. Penso tê-lo citado uma vez a ti, numa tarde em que as nuvens caíram baixas e oblíquas, o céu entoou um vermelho sobre a minha cidade, e choveu forte. Era-me certo que as faixas vermelhas nas bordas do horizonte eram cidades iguais a minha, onde as coisas espelharam o mesmo tom, como a água e os pequenos troncos de um aquário sob o néon. Era-me certo que nesse dia as mesmas bordas estavam todas esbranquiçadas; caía-me a poeticidade de que delas alguém apontava sabendo que a cor e o sol dormiriam hoje no canto de cá.

Atribuo-me, também, noutra citação. Afirmei-te que, por mais colérico que estejas, o céu tem a capacidade de incitar os sorrisos em seu espetáculo. Hoje, porém, me provei errado. Sequer o notei, ao ponto de que as nuvens já se dissipavam e já crescia a escuridão da noite, e o culpado foi o próprio tempo que escapou dos olhos. Ele me roubou o sorriso do céu, mas falhou miseravelmente em tomar o sorriso que me traz a sua voz, que veio quando eu disse, por um motivo qualquer, uma palavra com a entonação que você a deu. Pudesse, ecoava a mesma palavra no céu vermelho até que ela perdesse seu sentido. Essa palavra é “Muito”. E me acendeu a necessidade e a existência de mesclar não a palavra ao céu, mas você à palavra.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Arquitetura

A criação não se espera na arte. O bom escritor, como o arquiteto raro, não se nutre da admiração dos leigos. A obrigação é de erguer, no domínio dos sentidos ou nos quartos da memória, a elegância de um mundo novo. Assim se faz falha a casa bela, com as saudades de costume e os lamentos de um só mestre e tempo, e assim falham os poemas de amor com os usuais arranjos e as mesmas abóbodas. É necessária a casa peculiar, mesclando cores que se destoam, para o dono igualmente singular. Há também a ambição dos que escrevem ou erguem: a casa tida. Não segue fôrmas e, quando a vê, sente uma nostalgia modesta de já a ter possuído. A casa tida é um truque de difícil governo para os arquitetos, afinal se encomenda a arte pelo gosto. O escritor tem a dádiva de fazê-la pelo próprio, encontrando os leitores para as palavras. Aos de Drummond bastou uma pedra. Aos meus, duas cidades e uma poetisa.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Requiém do Sol

Luzi pontualmente, por todos os anos e olhos, e aqueci. O meu ímpeto egoísta, de negar a luz, passou à ideia de raiá-la toda a ti, desde a primavera em que choveu-te e me cuidou tão tenra. A distância desfez-se domada. Chuvas finas e calorosas vieram solar a terra. Logo entornamos o céu de um espetáculo além, e as pessoas que mirassem-no, sabendo onde fitar, nos encontrariam juntos; um curto arco-íris nas bordas de uma montanha ou na face espelhada dos prédios. Mas fez-se o outono, e os olhos penderam à terra.

Meu brilho agora cresce cessante, como se adormecente. Obrigam-me ao claustro de algumas janelas, de onde fito à exaustão, procurando-te em cantos distantes, nos finos fios que parecem atar as nuvens ao chão e que te precedem. Obrigam-me a chama fraca, que toda lhe direciono, mas que não basta, e que não chama. Entrego-me ao ofício de te esboçar. Quase te vejo. À noite, quando vem tocar o meu teto e, submerso em uma orla reclusa, ergo os raios como os braços ao seu encontro. Outrora, entre as árvores de um campo, vejo tecer seus fios...

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Ao leitor

Pela vaidade desses dias, deixei abrir uma fenda de dois meses entre essa prosa e a passada; trazendo agora a chave de um questionamento que sequer me coube fazer. O fato é que o escritor mais prolífico tem os textos não da musa, mas do anseio de obtê-la, de tocá-la e, não obstante, das miragens que os envolverá quando, e se, suas prosas nascerem reais. E me fluiu constante, nos meses anteriores, afogados em um só anseio intimista, de dois escritores, em encontrar o que chamei de refúgio e enseada. Mas hoje temo ter chegado a uma bifurcação de estrada. O que cuidei escrever, em cinco dos meus últimos textos, em metáforas distintas, tornou-se real por cinco vezes, como se ouvissem todas as súplicas.

Porém, se for o anseio a representação máxima da escrita, que faz o escritor quando existe no mundo que criou? Creio não haver poeticidade na resposta que é, em si, a própria fenda. O refúgio, a enseada... Afirmo: por mais metáforas suspensas ao uso, e pelo vocábulo infinito da língua, escrevê-la é se entregar a inexatidão e trair os sentidos. Não escrevê-la é um egoísmo que me cabe. É a memória mais terna que tenho, e não pretendo simplificá-la ou àqueles olhos. Posso, para deixar-te com algo, dizer o que são aqueles olhos pelo efeito que eles tem em mim. E digo-lhe, leitor, se fixaram de tal forma que, com certas peculiaridades, fecho os meus fiéis de acordarem no domínio daqueles que, em si, são a enseada no refúgio.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Indagação

Por um segundo, atei-me ao chão. Quiseram voltar a casa, os braços e os olhos, e lancei-os por detrás dos ombros, atirando-os na janela para soprar as cortinas. Bem sabe, porque vistes. As mãos queriam o metal frio da maçaneta, o ouvido o ranger das dobradiças na porta, e não fosse mais forte que me imaginava, estaria lá a conjugar os termos para a estadia. Mas pendi os passos e fui.
Se não verteu no jardim, não o faria agora. Desafiei-me a não pensar na indagação, sentei a esperar o ônibus e por alguns momentos fitei a lua crescente, em sua cor de ferrugem – até que enfraqueci. Por que fazer da noite um arco que separa, varrendo os dois sóis da menina? Arrastando, em um estado letárgico, onírico? Por não estar ali, por não ter casa que não é teus olhos.
Recompus-me. Mirei a gente de uma casa verde, e como se entrelaçavam na cozinha enquanto um deles preparava café. Tinham de ficar acordados. A janela projetava a angústia, o alvoroço, e me teve até trair-me um canto do olho, com o ônibus que me chamaria de volta. E se voltasse? Se me mantivesse firme como uma torre de mármore, trouxesse no semblante o convite das horas, não haveria recusa.
São, desisto dos devaneios. Fixo sobre o mostrador do relógio digital, e no virar dos números vermelhos a fim de apressá-los. Embarcar – devo embarcar. É o último ônibus, e se embarcar, ainda que descanse a cabeça no vidro a pensar, como quem fita além do monte e quer rasgar o céu, a intenção não me trará aqui.
Devo embarcar – se chover, não há o que faça. Os trovões me inquietarão e o estalar da água no meu telhado de ferro calarão a própria voz, e o corpo irá. Caminhará cada vez mais rápido através das ruas, das gotas e faróis de carros. Devo embarcar, mas o ônibus não vem.
Temo que nunca virá.

terça-feira, 29 de março de 2011

Quero a chuva além da chuva

Vamos procurar o nosso refúgio. O sol o encontra no mar, para diluir sobre as ondas e cair no fundo, bronzeando alguns rochedos e só - o sol se reserva até o próximo raio. As nuvens o encontram na chuva, recolhendo os olhos, reduzindo o fitar, e a chuva o encontra estalando as gotas no telhado, oscilando a sua voz com a dos sonhos em uma madrugada. Fortaleço a proposta, procuremos a nossa enseada. Não há navio que não se entrega a um porto, e assim nos atentaremos a luz do primeiro farol. É o nosso renascer.

Já não basta escorrer na janela, quero a chuva além da chuva.
Compartilhar o mesmo telhado. Vamos, amor... procuremos, amor...
É nosso por direito.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Periélio

Nascerá de nós um dia sem relógios. Darei à manhã um índigo sem nuvens,
e darei flores as bromélias, e tons peculiares às janelas, sabendo o meu egoísmo – nesse dia, me extinguirei. Encontrar-te-ei no fim da tarde, e não haverá poente, para não haver traço algum de nossa fuga; iluminarei apenas os palmos a frente, e tua tempestade há de cobrir os passos detrás. Vamos ao oriente e ao norte. E na porção mais fria da jornada hei de estender os raios uma última vez, e pousarei em ti mais quente e vivo do que já me viu, fazendo nosso lar.

Fitará em todos os cantos, mas não vai encontrar-nos, e nascerá de nós um dia sem relógios – na ira do regente há de se adiar para todos. Nesses minutos incontáveis, viveremos do outro, insaciáveis do outro, num jardim de orquídeas; ouvirei suas histórias, compartilhando o calor que me resta... e apagarei. Enfim, outro astro assumirá o trono, e haverá manhã. Dirão os mais ditosos se tratar dos deuses, e não revelaremos a verdade. Por fim, se passará para as estrelas que nascem a história de nossa fuga, alertando sobre o amor, mas de forma tão surreal que as fará sonhar.

E nós, perguntas? Nós não diremos ao outro sobre esse dia, para não falhar nas palavras. Verás uma brisa fria chamar um sorriso meu, e terás toda a certeza; encostarás no meu ombro a fim de esconder sua reação, e se verter uma lágrima, a enxugarei com o rosto, mas não questionarei sua origem. Assim farás também comigo, até que a próxima estrela desça cá conosco...

segunda-feira, 14 de março de 2011

Amante

Pairou furtiva e tão rara,

Assoprou as nuvens, vestiu-se

De um amarelo-manteiga

E dormiu a contar as estrelas

Em seu cobertor...


Acordou, viu que fora traída.

‘Pois o Sol, que acariciando

A terra, verteu sobre uns olhos,

Tão grandes, castanhos...

Que perdeu-se no manto celeste!

E ficou...


As estrelas foram o júri dela.

E o divórcio foi mútuo de horas...