quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Buraco em Montes Altos

Quando começaram a retirar toda a parafernália do local, o buraco em Montes Altos já abria cem metros de diâmetro, tinha causado centenas de fatalidades e o furor das principais emissoras televisivas, que por si impulsionaram milhares de visitantes e o episódio que você pode conhecer como “Os deslizes de Montes Altos”. Outras pessoas, como os moradores de cidades próximas, devem relatar por “O incidente de oitenta e cinco”. Independente do vernáculo, as duas definições resumem o período de oito meses, do fim de Abril ao começo de Janeiro, em que o prefeito Argélio governava os três mil habitantes provincianos e suspeitos de um município pacato; um molde maranhense dos shires ingleses e dos countys americanos.
Nessas cidades o tempo não foge como a nós. Portanto, dois caminhões que se chocaram em um domingo, tendo um deles tombado, afligiram no asfalto uma rachadura do tamanho das tangerinas, que permaneceu sem supervisão até a madrugada de segunda. Vejam só, as pessoas em Montes Altos tem a fama de serem presunçosas. Quando a caminhonete da prefeitura iluminou a fenda com um holofote, preso a um ferro na carroceria, os funcionários que deveriam reparar os danos pouco fizeram; coçaram os quepes e fitaram-na: o pequeno buraco, agora do tamanho do veículo, poderia arrastá-los para sabe se lá quantos metros subterrâneos. E assim pensaram, uns com os outros, no aconchego de seus colchões pobres, de feltro; resolveram que pouco ou nada poderia ser feito para remediá-lo, o maldito buraco, e foram ter em suas casas no subúrbio.
Quando a notícia chegou ao prefeito Argélio, de que a fenda não fora reparada, esta já estava maior e não demonstrava sinais de que iria, hora ou outra, desistir; engoliria a cidade toda. A única solução seria locar os tratores de Paço do Lumiar. Mas mesmo este município, que era o mais próximo, estava a horas de distância em uma estrada esburacada e alagada pelas chuvas mansas. As máquinas por hora atribuiriam dívidas exorbitantes. - Fora o trabalho todo... -, pensou Argélio na poltrona reclinável em seu gabinete. - Que fique assim.
As pessoas não protestavam, estando para o buraco como estamos todos para a morte: esperavam cheios de um otimismo vão. E assim ao caos se deu teor de castigo divino. Quando as avenidas principais foram consumidas, tomaram rotas alternativas; e quando as vendinhas ruíram, começaram a plantar no quintal, no encharque, no lodo. Mas andavam por aí sempre com um mal estar no estômago e, quando ouviam os ruídos do deslize de terra e asfalto, desatinavam a rezar, apertando as mãos em súplica.
Os primeiros mortos foram velados, visto que o cemitério era a alguns quilômetros do centro, com grande assombro. Mas uma vez que os postes foram aterrados, cessando a energia elétrica e rompendo os fios de telefone, a contagem deles se perdeu.
Nas ruas, estilhaçadas pela força dos deslizes, imperava o sentimento de derrota. Sair e ver o monstro, inevitável e voraz, o maldito buraco, com o só propósito de trabalhar ou de visitar alguém, foi desconsiderado. Alguns cidadãos se moveram até outras cidades. Mas, na grande maioria, os Altenses esperaram a morte em casa. E essa chegou, engolindo as vidas em uma fila circular concêntrica.
Quando as emissoras televisivas chegaram, o buraco já constava uma catástrofe nacional. Mediram cento e vinte metros de profundidade, todos de lama e escombros do que foi Montes Altos. Os analistas e os contadores obtiveram, em esforço coletivo, o valor da soma necessária para reparar o que se espalhou como “A boca do Inferno” no resto do país. Mas era óbvio que esse não era o ideal. A proposta, de relocar as pessoas nas cidades que cercavam a sua, não agradou a todos os moradores – a idéia de começar uma nova vida, e do trabalho necessário para tal, aterrorizou as famílias. Porém alguns, como Argélio, com uma enorme barba e já sem profissão, fugiram para morrer de fome no Rio de Janeiro. Os outros insistiram em continuar lá, onde dormia o buraco.
Ele permaneceu a ruir, mas eventualmente parou. Hoje, vinte e seis anos após o incidente, que se tornou uma fábula que entorna a preguiça, uma tragédia indelével da história maranhense, se encontram não mais que cem habitantes. Vivem de plantar alface e cenoura, na terra úmida da beira. E quando estão lá, olham para baixo, para o buraco, como uma grande criatura, morta de velhice, e não deixam de pensar pelos que sucumbiram, como penso agora, que descansem em paz.

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